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ICMS nas transferências interestaduais: afinal, pode-se manter o crédito integral no estado de origem?

26/02/2025

ICMS nas transferências interestaduais: afinal, pode-se manter o crédito integral no estado de origem?

Como se sabe, a Ação Declaratória  de Constitucionalidade (ADC) nº 49 consolidou, de uma vez por todas, a não-incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas transferências interestaduais. Embora atendendo a um anseio dos contribuintes, essa decisão tinha um potencial efeito colateral muito perigoso: o risco de acúmulo de saldo credor no estabelecimento de origem – de monetização sempre tormentosa –, com o aumento do saldo devedor no estabelecimento de destino.

Entenda o histórico

Sensível a essa perspectiva, o Supremo Tribunal Federal endereçou, e bem, o ponto no julgamento de embargos de declaração daquela ADC. O Supremo decidiu que o crédito apropriado pelo estabelecimento de origem não precisaria ser estornado e que poderia ser transferido ao estabelecimento de destino. Encomendou, então, ao Confaz que disciplinasse, até o fim de 2023, como seria realizada essa transferência.

Convênio ICMS nº 178/23: obrigatoriedade de transferência de crédito da origem ao destino

Sobreveio, então, o Convênio ICMS nº 178/23, que cumpriu essa tarefa, estabelecendo que o crédito da origem seria obrigatoriamente transferido ao destino, mediante aplicação da alíquota interestadual sobre as grandezas do art. 13, §4º da Lei Kandir. Eventual crédito remanescente poderia ser mantido na escrituração do estabelecimento de origem.

Sucede que a ADC nº 49 nunca obrigou, apenas assegurou a transferência do crédito da origem ao destino, e embora essa transferência convenha aos contribuintes em uma boa maioria das vezes, nem sempre é assim. Há situações em que a manutenção do crédito na origem mostra-se mais vantajosa, por exemplo quando o estabelecimento de destino tenha regime especial em que o ICMS incida sobre a receita bruta de vendas, de modo que, para este estabelecimento, o crédito é uma moeda inútil.

Convênio ICMS nº 109/24: direito à transferência de crédito?

O Convênio ICMS nº 178/23 foi então revogado pelo Convênio ICMS nº 109/24, e o mercado, de maneira geral, celebrou a nova norma convenial por supostamente converter a obrigação de transferência em direito. Realmente, a cláusula primeira do convênio revogado prescrevia ser “obrigatória a transferência do crédito”, enquanto a cláusula primeira do novo convênio diz que “fica assegurado o direito à transferência do crédito”.

A nosso ver, porém, o Convênio nº 109 não tem todo esse desejado impacto. É que o parágrafo único da sua cláusula primeira praticamente neutraliza o direito assegurado no caput, dispondo que o estado de origem fica obrigado a assegurar somente a diferença positiva entre os créditos das operações de aquisição e o valor correspondente à aplicação da alíquota interestadual sobre a operação de transferência.

Na prática, então, o crédito da origem não será integralmente oponível ao fisco de origem. A cláusula primeira do Convênio nº 109 “tira com uma mão e dá com a outra”…

Lei Complementar nº 204/23: possíveis interpretações

Entre os Convênios 178 e 109, porém, foi editada a Lei Complementar (LC) nº 204/23, com o propósito de adaptar a Lei Kandir à ADC nº 49, e que, evidentemente, prevalece sobre quaisquer disposições conveniais.

A LC nº 204 acresce um novo §4º ao art. 12 da Lei Kandir, que disciplina justamente a transferência do crédito entre origem e destino, adotando essencialmente o mesmo racional dos Convênios: crédito pela alíquota interestadual ao estabelecimento de origem, e eventual crédito remanescente ao estabelecimento de origem.

A redação deste §4º não é absolutamente clara, mas parece-nos possível sustentar, sobretudo por uma intepretação histórica – a LC 214 é produto histórico da ADC nº 49 –, que essa disciplina de transferência prevista na lei complementar é meramente facultativa, e que o crédito poderia, sim, ser integralmente mantido na origem.

Mas a LC nº 204/24 não para por aí. Ela acresce ainda um §5º ao art. 12 da Lei Kandir, que foi vetado pelo Executivo, veto esse que o Congresso derrubou. Esse §5º institui uma alternativa ao contribuinte, que é simplesmente voltar ao cenário anterior à ADC nº 49 e seguir debitando o ICMS nas transferências. Nessa hipótese, o crédito de entrada ficaria, sim, todo na origem, mas ao custo de debitar o ICMS nas saídas, o que evidentemente não é uma solução satisfatória para os contribuintes.

E a jurisprudência, como está?

No Tribunal de Justiça de São Paulo, o tema segue bastante disputado. Há precedentes desfavoráveis (10ª Cam., AC 1021514-90.2024.8.26.0053), mas que são anteriores ao Convênio 109, deixando expectativa se haveria mudança de entendimento com a nova norma; há precedentes claramente favoráveis (3ª Câm., AI 2371376-02.2024.8.26.0000); e há precedentes que poderíamos chamar de “pseudofavoráveis” (5º Câm., AC 1006638-81.2024.8.26.0037), que permitem a manutenção integral do crédito na origem, mas com fundamento no referido §5º trazido pela LC nº 204, ou seja, sob a condição de débito nas transferências.

Enfim, o cenário ainda é incerto e os contribuintes que desejem manter a totalidade do crédito na origem devem se acautelar.