Este artigo destaca as principais inovações da Resolução nº 214 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e aborda os questionamentos e desafios que podem surgir para o mercado de Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), proporcionando uma compreensão mais clara de como o setor deve se preparar para a implementação das novas regras.
Como surgiu o Fiagro?
O Fiagro foi instituído pela Lei 14.130/21, que modificou a Lei 8.668/93, responsável pela regulação dos Fundos de Investimento Imobiliários (FII). Atualmente, sua regulamentação é feita pela Resolução CVM 39, uma norma provisória que permite a constituição de Fiagro com base na regulamentação de outros fundos: FII, Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) e Fundos de Investimento em Participações (FIP). Contudo, ainda que a resolução tenha sido bem recebida, ela limita os Fiagro a replicarem as carteiras de outras categorias de fundos e, por consequência, restringe a diversidade de ativos e o pleno aproveitamento das oportunidades legais.
O que diz a Resolução CVM 214?
Em 30 de setembro de 2024, a CVM publicou a Resolução CVM 214, que estabelece regras específicas para os Fiagro. A nova norma é um avanço na regulamentação para esses fundos, já que introduz ajustes que visam ampliar seu escopo de atuação e garantir maior segurança aos investidores, por meio de:
- padrões de conduta;
- transparência informacional; e
- governança dos agentes do mercado.
A nova regulamentação traz maior variedade de ativos nas carteiras de um único Fiagro, abarcando imóveis rurais, direitos creditórios do agronegócio (como Cédula de Produtor Rural – CPR, Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA e Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA), entre outros títulos e valores mobiliários ligados ao setor. Os Fiagro poderão, também, investir no mercado de carbono e adquirir Créditos de Descarbonização (CBIO).
A Resolução CVM 214 entrará em vigor em 3 de março de 2025 e fará parte do marco regulatório dos fundos de investimento no Brasil, incluindo o Anexo Normativo VI da Resolução CVM 175. Os Fiagro já em operação terão até 30 de junho de 2025 para se adequar às novas diretrizes.
Quais são as inovações da norma?
- Não definição do termo “Cadeias produtivas do agronegócio”
Em linha com a lei que instituiu os Fiagro e com o previsto na norma que instruiu a audiência pública, a CVM optou por não definir de forma restritiva o termo “cadeias produtivas do agronegócio”. Essa ausência de definição deixa claro o entendimento do regulador de que a abrangência do Fiagro tende a ser mais ampla do que enxergamos para o CRA atualmente.
Em relação ao CRA, há uma limitação clara imposta pela legislação e pela regulamentação que a acompanha sobre o que pode ser considerado como ativo passível de lastrear a emissão deste título. Por outro lado, a abordagem menos engessada da lei e da regulamentação dos Fiagro sobre este tema deve ser entendida como algo positivo, uma vez que este instrumento tem o intuito de servir a cadeia do agronegócio como um todo, e não apenas uma parte específica desta.
Desta forma, os Fiagro surgem como uma opção extremamente relevante para democratizar o crédito ao agronegócio, de uma forma mais ampla do que temos hoje. Segundo entendimento da CVM no Relatório de Análise da Consulta Pública da norma dos Fiagro, “assim como – só um exemplo – tem ocorrido no âmbito das operações com certificados de recebíveis do agronegócio, espera-se que ao longo do tempo a atuação da CVM origine contornos melhor definidos para as cadeias produtivas do agronegócio para fins das operações dos Fiagro”.
- Fiagro multimercado – Diversificação de ativos
A nova norma autoriza que um único Fiagro destine recursos a investimentos variados, como imóveis rurais, direitos creditórios e participações em empresas do agronegócio, funcionando, assim, como um fundo “multimercado” voltado para o agronegócio. Essa flexibilidade permite a diversificação dos investimentos do Fiagro em diferentes ativos, o que evita a dependência do fundo a um único tipo de ativo.
Neste sentido, para prevenir assimetrias regulatórios, a Resolução CVM 214 determina que os Fiagro que adotem políticas de investimento que permitam alocar mais de 50% de seu patrimônio líquido em ativos que também sejam alvo de investimento de outras categorias de fundos devem, subsidiariamente, seguir as regras pertinentes a essas categorias.
Esta inovação traz diversos benefícios aos Fiagro, já que possibilita que um mesmo fundo esteja vinculado a riscos diferentes dentro do setor do agronegócio. Como temos visto ultimamente, diversos Fiagro vêm sofrendo com eventos de crédito relacionados aos CRA. Em um cenário no qual um Fiagro poderia, além de investir em CRA, investir em outros ativos, tais como imóveis, participações societárias e outros títulos e valores mobiliários relacionado ao agronegócio, essas situações pontuais de inadimplemento poderiam ser menos sentidas pelos cotistas destes Fiagro, se considerarmos que a sua carteira estaria bem mais pulverizada. Certamente essa é uma frente que poderá ser explorada pelos gestores dos Fiagro para diversificar o risco dos cotistas destes fundos.
- Créditos de carbono e Créditos de Descarbonização (CBIOS)
No contexto do mercado de carbono, os Fiagro terão permissão para investir em créditos de carbono relacionados ao agronegócio, que são definidos como “títulos que representam a efetiva redução ou remoção de gases de efeito estufa da atmosfera, conforme as legislações e regulamentações específicas, originados das atividades das cadeias produtivas do agronegócio” (conforme Art. 3º, inciso I da Resolução CVM 214).
Além dos créditos de carbono relacionados ao agronegócio, a nova norma trouxe a possibilidade de investir em CBIOs, que são títulos financeiros negociáveis que representam a redução das emissões de gases de efeito estufa no setor de combustíveis.
A definição de créditos de carbono do agronegócio para os Fiagro é diferente daquela prevista para créditos de carbono, conforme descrito no Anexo Normativo I – FIF da Resolução CVM 175. Nos Fundos de Investimento Financeiro (FIF), esses créditos estão integrados ao conceito de ativos financeiros, limitando-se ao mercado regulado e excluindo o mercado voluntário. Para fins dos Fiagro, não há restrições para que esses créditos estejam associados ao mercado regulado, o que aumenta as opções disponíveis.
A nova norma também permite que os Fiagro não apenas negociem créditos de carbono, mas também se tornem seus originadores em imóveis rurais de sua propriedade. Essas inovações destacam o potencial do Fiagro de se adaptar às exigências do mercado de carbono e oferecer novas oportunidades de investimento.
Apesar disso, essa flexibilização da nova norma, em comparação ao texto previsto na audiência pública, no qual a CVM deixou claro que o mercado de crédito de carbono no Brasil ainda possui riscos extramercado. A Resolução CVM 214 impõe requisitos adicionais de governança, destinadas à proteção dos cotistas dos Fiagro, relacionadas ao controle da existência, integridade e titularidade dos créditos de carbono do agronegócio.
- Aumento da definição de imóvel rural
De acordo com a Resolução CVM 214, além da definição lógica de imóvel rural para fins desta nova norma, os imóveis situados em áreas urbanas, desde que voltados para atividades das cadeias produtivas do agronegócio e devidamente registrados no Registro Geral de Imóveis, podem ser considerados como imóveis rurais e, com isso, os Fiagro passam a ter a possibilidade de adquiri-los. Essa alteração representa uma mudança importante, ampliando as oportunidades de investimento dos Fiagro em regiões urbanas.
Além disso, a nova norma considera como imóvel rural aquele que possua depósito de água não marinha, natural ou artificial, destinado à utilização em atividades de piscicultura ou aquicultura, a fim de abranger uma especificidade do setor, sem prejuízo da necessidade de estar inscrito no cadastro ou registro de imóveis competente (Resolução CVM 214, Art. 3º, parágrafo único ). É necessário que o informe anual, o pedido de registro de oferta pública de distribuição de cotas e, quando aplicável, o laudo de avaliação contenham a inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou que seja apresentada uma justificativa para a ausência dessa inscrição (Resolução CVM 214, Art. 7º).
Quais são os principais desafios para a implementação da nova norma?
A nova norma busca facilitar o acesso ao mercado de capitais para o agronegócio e fornecer padrões de transparência e governança para a proteção dos investidores, mas, devido à falta de regulamentação específica dos créditos de carbono, é possível identificar alguns desafios associados à sua inclusão na carteira dos Fiagro, o que, por sua vez, gera certa insegurança jurídica, principalmente aos gestores. Já foram identificados casos de emissão fraudulenta desses ativos no Brasil e a nova norma não esclarece se a gestora será responsabilizada diretamente em situações de aquisição de créditos de carbono fraudulentos.
Nesse contexto, a variedade de emissores desses ativos possibilitará a criação de diversas estratégias para o investimento em créditos de carbono, o que torna necessário que o Fiagro esteja apto, por exemplo, para lidar com os efeitos do aquecimento global nas lavouras. Contudo, essa análise pode demandar um nível de sofisticação que ainda não é observado entre os gestores brasileiros, dado que há uma escassez de informações disponíveis para abordar as questões relacionadas ao impacto das mudanças climáticas nas safras futuras.
A Resolução CVM 214 também ressalta a importância dos gestores e administradores na seleção cuidadosa dos ativos, estipulando que, no caso de participações societárias, os fundos devem exercer influência efetiva sobre as empresas investidas. Além disso, para os direitos creditórios, a nova norma estabelece requisitos específicos de diligência e registro, visando garantir a conformidade dos ativos (Resolução CVM 214, Art. 29 inciso III).
Esses são alguns dos aspectos críticos da norma que requerem discussão, especialmente em um cenário em que o mercado demanda maior segurança. As respostas para essas indagações só poderão ser encontradas na prática da implementação e por meio da regulamentação de determinados ativos, como os créditos de carbono.
Outro ponto importante a se observar no decorrer da aplicação da nova norma se refere às possíveis limitações ao conceito de cadeias produtivas do agronegócio. Assim como observamos ao longo do desenvolvimento de diversos produtos financeiros nos últimos anos, a CVM sempre atua de forma ativa na fiscalização e melhor definição dos limites a serem adotados pelos participantes do mercado. É de se aguardar que com os Fiagro não seja diferente. É provável que ao longo dos anos tenhamos aprimoramentos e delimitações mais claras e objetivas em relação a este conceito, para que a intenção do legislador em relação à aplicação dos recursos diretamente na cadeia produtiva do agronegócio seja aplicada, assim como a efetiva proteção dos investidores desta categoria de fundo.
Quais são os impactos positivos da nova norma?
A Resolução CVM 214 marca um avanço significativo na integração do setor agroindustrial ao mercado de capitais, especialmente em um contexto desafiador. A nova norma estabelece diretrizes para a criação de fundos de investimento voltados para as cadeias produtivas agroindustriais, os Fiagro Multimercado, o que promove uma maior segurança jurídica que pode facilitar a captação de recursos. Essa segurança é fundamental, considerando os recentes eventos de recuperação judicial e inadimplemento, como exemplificado pelo caso da varejista de insumos agrícolas Agrogalaxy.
A necessidade de recursos no agronegócio nunca foi tão evidente. Com a volatilidade do mercado e os desafios financeiros enfrentados por diversas empresas do setor, a aproximação ao mercado de capitais se torna uma estratégia essencial para garantir a sustentabilidade e o crescimento das atividades agroindustriais. A nova regulamentação oferece um ambiente mais seguro e transparente, o que pode atrair novos investidores e fomentar o fluxo de capital.
Além disso, ao permitir que os fundos de investimento exerçam influência efetiva sobre as empresas investidas, a norma reforça a responsabilidade dos gestores e administradores na seleção criteriosa dos ativos. Isso não apenas potencializa a eficácia dos investimentos, mas também contribui para uma gestão mais profissional e alinhada com as necessidades do setor.
Em suma, a Resolução CVM 214 não apenas representa um passo importante na modernização das relações entre o agronegócio e o mercado financeiro, mas também oferece uma oportunidade vital para revitalizar o setor, atraindo os recursos necessários para o desenvolvimento do agronegócio. A criação do Fiagro Multimercado é um sinal promissor de que, com as devidas garantias jurídicas e a estruturação adequada, o agronegócio pode encontrar novas fontes de financiamento, essenciais para enfrentar os desafios atuais e futuros.